A democracia ateniense durou cerca de dois séculos, das reformas de Clístenes (502 a.C.) à paz de 322 a.C., quando Antíparo impôs a transformação das instituições políticas. Um dos principais legados dos gregos para a humanidade foi, seguramente, a democracia direta, com os debates públicos acerca das políticas de Estado. E cá se diga que os naturais temperos de época, presentes, especialmente, no número de cidadãos na pólis e na limitação imposta à participação dos escravos não podem macular a importante herança helênica.
O art. 6º da Proposta de Emenda à Constituição 188/2019, intitulada PEC do Pacto Federativo, insere o art. 115 aos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), regulando a extinção de municípios com até cinco mil habitantes que não comprovarem, até o dia 30 de junho de 2023, sua sustentabilidade financeira. Ela parece, definitivamente, olvidar por completo a lição dos gregos!
Ora, estabelecer critérios objetivos para extinção de municípios, unidades administrativas autônomas, em pleno funcionamento, com história, vidas, pessoas, patrimônio cultural e religioso, sem sequer “ouvir” a população, é uma proposição que se divorcia dos princípios democráticos do Estado de Direito. A topologia constitucional é clara em albergar, já em seu art. 1º, caput, que a
República Federativa Brasileira é um Estado Democrático de Direito. A dignidade da pessoa humana, a cidadania, o pluralismo político e, mais notadamente, a “titularidade do poder pelo povo”, alicerçam a concepção inarredável de que os instrumentos democráticos não são meras figuras decorativas, mas esteios do Estado. Nesse sentido, a principiologia constitucional impõem a oitiva da população acerca da PEC proposta.
A previsão do §5º, que veda a consulta à população, implica em violação ao art. 14 da CF, que elege o plebiscito como uma forma de exercício da soberania popular. A incorporação compulsória sugere, assim, que mesmo por meio de PEC, existiria uma “norma constitucional inconstitucional”, na linha da doutrina do constitucionalista alemão Otto Bachof. De outro lado, o §1º do mesmo art. 115 determina a comprovação de que o produto dos tributos de arrecadação municipal (ISS, IPTU e ITBI) deve corresponder a, no mínimo, 10% da sua receita. Os municípios que não atentarem ao conceito de sustentabilidade definido na PEC serão incorporados a algum dos municípios limítrofes a partir de 1º de janeiro de 2025. O §4º prevê ainda que “poderão ser incorporados até três municípios por um único Município incorporador”.
Dados preliminares apontam que 1.254 municípios podem ser extintos, ou seja, praticamente um em cada quatro municípios brasileiros seria incorporado pelos irmãos lindeiros. Não se olvida, aqui, a ideia de eficiência do Estado, tão combalido e inexitoso, todavia, nem sequer nesse ponto a PEC é feliz! Isso em razão de que o critério financeiro de sustentabilidade é absolutamente torto. O §1º da norma define receitas próprias como sendo as de arrecadação direta.
Ora, o federalismo cooperativo impõem que, nesse conceito, também sejam abarcadas as receitas transferidas, o que inclui, por exemplo, o FPM – Fundo de Participação dos Municípios, 23,5% de tudo que é arrecadado pela União a título de IR e IPI, 50% do que a União recebe de ITR , 50% do que o Estado arrecada de IPVA, o índice de retorno de ICMS, na esteira de 25% do que os Estados arrecadam, 25% do Fundo do IPI-Exportação e 25% do CIDE destinado aos Estados. E isso só para começar! Vale sublinhar que tais previsões têm acento constitucional e são classificadas como transferências obrigatórias.
Há ainda uma violação constitucional procedimental, pois a incorporação dos municípios só pode ocorrer na forma do art. 18, §4º, da Carta Política. Por fim, evidente ultraje, também à cláusula pétrea do federalismo, insculpida no art. 60, §4º, I da Constituição. Calha ainda trazer a reflexão da CNM, pois, “se for aplicado o conceito sobre a receita corrente dos 5.568 Municípios brasileiros em 2018, 4.585 (82%) ficariam abaixo deste limite, sendo um deles a capital Boa Vista/RR, que possui quase 400 mil habitantes”. Ademais, em boa parte dos países do mundo o número de municípios é assaz superior ao do Brasil. É o que ocorre na França, que possuí 36 mil cidades, na Alemanha, com 11 mil e na Espanha, com oito mil.
Winston Churchill, certa feita, empunhando seu charuto e o inseparável copo de uísque, balbuciou: “Tem-se dito que a democracia é a pior forma de governo, salvo todas as demais formas que têm sido experimentadas de tempos em tempos”. Pela democracia, que os municípios cuja extinção é pretendida continuem pulsando, vívidos e sigam construindo suas histórias. Que a população possa bradar sua origem com orgulho, como eu, que, com a incorporação de Cotiporã, minha querida terra natal, serei apátrida?
Tenho convicção que, se a proposta passar pelo Congresso, parará no STF! As inconstitucionalidades nascem aos borbotões em todos os cantos da PEC! Que a máxima de Carlos Drummond de Andrade seja concretizada e a “Democracia seja a forma de governo em que o povo imagina estar no poder”. Que, ao menos, a população de Santa Tereza, Pinto Bandeira, Cotiporã e de tantos outros possa, ao menos, pensar que partilha um naco desse recôndido poder do Estado!