Sarampo  é uma infecção do sistema imunológico que causa amnésia imunológica no corpo

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Depois da infecção seu corpo “esquece” de todas as outras infecções que já enfrentou e precisa reaprender quase do zero

 

Quando você é infectado com sarampo, seu sistema imunológico  se esquece dos patógenos que enfrentou até então — todo resfriado, toda gripe, toda exposição a bactérias ou vírus no ambiente, toda vacina já recebida. A perda é quase total e permanente.

Uma vez que a infecção de sarampo acaba, a evidência atual sugere que seu corpo precisa reaprender o que é bom e o que é ruim para ele, quase do zero.

“De certa forma, a infecção causada pelo vírus do sarampo basicamente reconfigura o sistema imunológico para seu modo original”, diz Mansour Haeryfar, professor de imunologia da Western University, no Canadá, “como se nunca tivesse se deparado com nenhum micróbio no passado”.

Um contágio, muitas consequências

Mas como isso acontece? Quanto tempo dura? E será que pode causar outras epidemias?

O vírus do sarampo é um vírus respiratório antigo, transmitido por meio de aerossóis (partículas suspensas no ar) e gotículas. Acredita-se que tenha passado do gado para seres humanos há cerca de 2,5 mil anos — possivelmente aproveitando-se das cidades abarrotadas de gente que proliferavam mundo afora na época.

Desde então, o sarampo passou a circular livremente para atacar crianças do mundo todo — especialmente nos primeiros anos de vida —, infectando quase todas as pessoas em algum momento antes de completarem 15 anos.

Em 1967, um ano antes de a vacina contra o sarampo ser introduzida no Reino Unido, foram registrados 460.407 casos suspeitos no país.

Quando colonizadores europeus cruzaram o Atlântico pela primeira vez, acredita-se que o vírus tenha sido um dos novos produtos importados — juntamente a outros, como a varíola e febre tifóide — que eliminaram 90% da população indígena das Américas no período de um século.

Os cientistas sabem, há décadas, que, mesmo depois da recuperação, crianças que foram infectadas com sarampo têm muito mais chance de ficar doentes e morrer de outras causas.

De fato, um estudo de 1995 identificou que vacinar contra o sarampo reduz a probabilidade de morte no ano seguinte entre 30% e 86%. No entanto, exatamente por que o sarampo era um elemento tão significativo na origem de doenças infantis não estava claro.

Até que, em 2002, um grupo de cientistas japoneses descobriu que o receptor com o qual o vírus do sarampo se conecta — uma espécie de fechadura molecular que permite que ele entre no corpo — não está nos pulmões, como seria de se esperar de um vírus respiratório. Em vez disso, se encontra nas células do sistema imunológico.

Uma equipe internacional de pesquisadores decidiu marcar o vírus do sarampo com uma proteína de cor verde fluorescente, infectando macacos com ele e rastrearam onde as partículas virais verdes iriam parar.

Os cientistas perceberam que ele infecta muitas células sistematicamente.

Então o vírus causa uma viremia, o que significa que passa a haver vírus no sangue — na verdade, glóbulos brancos são infectados e levam o vírus para todos os tecidos linfóides, que são seus linfonodos, seu baço, seu timo [glândula localizada no centro do peito que é parte do nosso sistema imunológico] ,confirmando que o sarampo é uma infecção do sistema imunológico.

Anos de recuperação

Desde a descoberta da amnésia imunológica, as peças do quebra-cabeça começaram a se encaixar. Uma vez que o sistema imunológico perde suas células de memória, ele precisa, com muito esforço, reaprender tudo que sabia antes.

Um estudo de 2015, feito na população, sugere que este processo de recuperação pode durar até três anos — o que, intrigantemente, é mais ou menos o tempo que leva para crianças adquirirem imunidade contra os patógenos do cotidiano.

Enquanto isso, as crianças que tiveram sarampo ficam expostas ao risco de serem infectadas por uma série de patógenos que seus corpos haviam sido capazes de reconhecer anteriormente.

Provavelmente, todas estas infecções precisam ser vividas novamente para realmente reparar todo o dano causado

E toda infecção traz o risco do desenvolvimento de uma doença.

Não surpreende, então, que o sarampo não apenas aumente o risco de contrair uma doença, como também de morte.

De fato, a mortalidade infantil devido a outros vírus é significativamente ligada à incidência de sarampo. O estudo de 2015 mostrou que, quando a mortalidade infantil aumenta no Reino Unido, nos Estados Unidos ou na Dinamarca, isso geralmente acontece porque o sarampo se tornou mais prevalente.

As conclusões explicam por que vacinar crianças contra o sarampo oferece um efeito colateral benéfico inesperado de reduzir as mortes entre crianças, muito além dos números que corriam risco de morrer do próprio sarampo.

Uma vacina vale centenas

Tudo isso significa que o sarampo pode ter um impacto profundo na saúde de uma população em geral, mesmo anos depois que um surto foi contido.

Veja o exemplo de Samoa. Acredita-se que as origens do surto de sarampo de 2019 na ilha estejam ligadas a um incidente traumático e excepcionalmente raro ocorrido anos antes, quando duas enfermeiras misturaram incorretamente um lote da vacina MMR, contra sarampo, caxumba e rubéola, e duas crianças morreram (as enfermeiras foram em seguida presas). Isso levou a um medo generalizado das vacinas, e como resultado apenas 30% da população do país estava totalmente imunizada em 2018.

Quando o sarampo — um dos vírus mais contagiosos do planeta, com um número de reprodução R entre 12 e 18 (ou seja, cada pessoa infectada transmite o vírus para outras 13 a 18 pessoas, em média) — chegou, encontrou condições quase perfeitas para sua propagação.

Embora as autoridades tenham conseguido controlar a epidemia de sarampo, seu impacto pode ter sido duradouro.

Menos de um ano depois que o sarampo desapareceu da ilha, um outro vírus chegou. Em 27 de novembro de 2020, Samoa registrou seu primeiro caso de covid-19.

A covid-19 nunca teve a oportunidade de se espalhar na ilha — um amplo programa de vacinação e lockdowns impediu sua propagação. Entretanto, projeções sugerem que, caso tivesse se propagado, a população local teria estado sob um risco significativamente maior como consequência do surto de sarampo.

De acordo com estes cálculos, o legado da amnésia imunológica na ilha poderia ter aumentado o número total de casos em 8%, e o total de mortes em mais de 2%.

Enquanto isso, estudos de modelagem identificaram que surtos de sarampo que ocorrem depois das campanhas de vacinação contra covid-19 podem eliminar a imunidade de rebanho contra o coronavírus e levar a um ressurgimento dos casos.

Isso tudo torna o sarampo definitivamente desagradável, se já não era. E também levanta uma questão importante: será que as pessoas que foram infectadas com sarampo deveriam tomar novamente suas vacinas?

Atualmente esta não é uma prática padrão — embora não seja uma ideia ruim.

Infelizmente, em termos práticos, revacinar as pessoas seria útil para uma minoria.

Serviria apenas para pessoas que foram totalmente vacinadas, mas não contra o sarampo.

É um grupo tão pequeno que não é realmente suficientemente significativo, eu acho, para desenvolver um programa como este numa base individual.

Então, enquanto ainda não há uma conclusão clara sobre a revacinação, uma coisa simples e ao mesmo tempo poderosa que as pessoas podem fazer para proteger suas preciosas memórias imunológicas— duramente reunidas ao longo de décadas, até formarem umas espécie de registro de nossas interações com o mundo — é se vacinar contra o sarampo.