Os movimentos sociais das últimas décadas modificaram o conceito de família tradicional formada pelo patriarcado onde o homem (pai) exerce autoridade sobre sua família, composta de mulher e filhos, cada um deles com papéis e responsabilidades definidos, o homem era o responsável por “colocar a comida na mesa” e a mulher por cuidar da casa e dos filhos.
A família moderna, formada pelas desconstruções de padrões resultou em uma formação familiar mais independente, tolerante e flexível. Não é possível dizer que existe um modelo único e específico de família, pois ele é mutável de acordo com a vivência da sociedade.
Mudança da estrutura familiar
A família moderna busca abranger todas as formações familiares, trazendo características de maior tolerância e flexibilidade, respeitando as particularidades de seus integrantes e não restringindo-se a um modelo pré estabelecido. O movimento é crescente no sentido de todos os membros da família colaborarem com as tarefas domésticas, ajudarem-se entre si e colaboram conjuntamente nas questões financeiras.
O laço afetivo é mais importante que o laço de sangue, ficando demonstradas novas constituições afetivas, como famílias formadas por pais com filhos adotados e biológicos que vivem juntos e se amam, independente do laço sanguíneo; formada por pais que adotam os filhos da outra parte e mantém uma boa relação com os seus ex, dentre muitas outras.
Conceitos limitantes
Em decorrência disto, é necessário desconstruir conceitos que diminuem e massacram aqueles que não se encaixam nos teóricos padrões ideais, perfeitos ou tradicionais.
Dentre esses conceitos está o de família desestruturada, que ainda é um reflexo das famílias tidas como perfeitas, compostas de um pai, uma mãe, que casaram tiveram filhos e ficaram juntos para sempre. Entretanto, é muito importante combater este conceito, pois os modelos familiares diferentes não podem ser classificados como desestruturados, afinal, não existe um modelo perfeito e ideal.
Independente de sua formação, as famílias não devem ser rotuladas ou receber imposições de padrões a serem seguidos, não importa como ela é formada, seja: família de apenas um dos genitores, o pai ou a mãe; constituídas por um casal homossexual que tenha um ou mais filhos biológicos ou adotados; famílias compostas por avós que cuidam dos netos como filhos; casal heterossexual e um bichinho de estimação, as variáveis podem ser inúmeras, mas todas elas são famílias.
Escolas e conceito de desestruturação
Muitos problemas que as escolas enfrentam com as crianças e jovens é atribuído a uma família desestruturada, entretanto, atrelar comportamentos, escolhas e opções a a formação familiar, não é o caminho, essa análise é baseada em preconceitos e ideologias limitadas.
As escolas tem um papel muito importante na formação das pessoas e para isso é imprescindível que estejam atentas aos ambientes que os seus alunos vivem, porém, o fato de virem de uma família que não representa o formato que estão acostumados e entendem por comum não pode ser um fator determinante de análise.
Um ambiente desestruturado é aquele que elementos como: violência doméstica, abuso sexual, dependência de alcool, drogas, brigas constantes, ausência de pudores e valores éticos, falta de amor e cuidado. A desestruturação nunca poderá ser medida somente de acordo com a formação estrutural da família.
Posicionamento da psicanalista Belinda Mandelbaum, coordenadora do Laboratório de Estudos da Família, Relações de Gênero e Sexualidade do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP).
Como o professor deve se posicionar frente à questão das diferentes composições familiares?
Sempre sem demonstrar preconceito com relação a filhos de pais separados, adotados por casais homossexuais, criados por parentes etc. Quem não age assism tem de repensar seus valores. Esse é um bom trabalho para ser feito em grupo, com os colegas e a coordenação pedagógica. É função da escola permitir que o assunto seja pensado e conversado, já que os educadores têm um papel fundamental na forma de tratar o tema.
Qual a melhor maneira de abordar a questão com os alunos?
Desmitificando a ideia de modelo ideal e propondo debates. Um bom caminho para isso é se basear em estatísticas. Na Síntese de Indicadores Sociais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2006, as famílias nucleares eram 49,6%, ou seja, mais da metade já tinha outras configurações. Muitas eram monoparentais, outras tantas formadas por pais ou mães homossexuais – um tipo que está em crescimento. Outra opção é destacar estudos recentes que já acenam para a conclusão de que, em termos do desenvolvimento psicológico e cognitivo, não há diferenças na criação de filhos por casais homossexuais. Quando o tema é tratado assim, promove-se um convívio melhor entre todos. A criança que está nessa situação se sente incluída, o que interfere na saúde psíquica dela.
É uma queixa comum dos educadores a falta de imposição delimites em casa. Isso realmente ocorre?
Pode ser que em alguns casos a escola tenha razão. Situações de falta de limite são comuns hoje em dia. Os pais ficaram fragilizados não por culpa deles, mas em virtude de um processo histórico que tem a ver com a diminuição do poder econômico e da autoridade. O homem, principalmente, está passando por uma perda de lugar na sociedade e sem querer transmite isso aos filhos. Cria-se, assim, uma situação em que não é mais dentro de casa que eles encontram regras importantes para o seu crescimento. Diferentemente do que se possa pensar, eles se sentem mais seguros quando não podem fazer tudo e se há alguém dizendo que estão no caminho certo. De fato, estabelecer regras é uma ação cada vez mais transferida a outras instituições. É como se a responsabilidade fosse terceirizada, inclusive para a escola. Além de compreender que isso é o sintoma de uma transformação social – e não uma falta de atenção dos pais – a escola pode promover debates e grupos de reflexão que ajudem cada um a encontrar seu papel.
Qual a melhor atitude a tomar quando se avalia que problemas em casa dificultam o avanço do estudante?
Se ele está com dificuldade e é levantada a hipótese de que aquilo esteja ligado às características de sua casa, é preciso verificar que tipo de apoio ele tem lá. Se alguém – independentemente de quem – faz o acompanhamento, não se pode dizer que seja esse o problema.
Por que, então, é tão comum atribuir a famílias desestruturadas o mau desempenho de um aluno?
Isso é algo feito quase automaticamente pelo professor, sem reflexão sobre a real relação entre as coisas. O ideal seria se perguntar: o que está realmente dificultando o desempenho do aluno? A resposta não pode ser algo como “os pais são separados” ou “ele só tem mãe”. O caminho é investigar o que está faltando de verdade à criança e estabelecer um diálogo honesto e livre de preconceitos com quem cuida dela. Só esse interesse genuíno já a ajuda. Se de fato uma situação doméstica está interferindo nos seus estudos, o educador precisa agir como o grande aliado que ela procura na escola.
Como se tornar esse aliado?
O estudante que está vivendo uma situação angustiante em casa muitas vezes pede socorro na escola. O educador tem de ser sensível a isso porque nem sempre ele é explícito. Ao vê-lo triste, angustiado, malcuidado ou apresentando queda de rendimento, é preciso acolhê-lo e ajudá-lo. O primeiro passo é tentar a aproximação, com a abertura de um espaço de escuta. Ele vai se sentir melhor ao perceber que tem alguém com quem conversar, que está interessado nele e pelo que está passando. Pode ser que o encaminhamento psicológico seja adequado, mas isso nem sempre é a solução. Em muitos casos, a simples atenção do professor que está todo dia ao lado dele pode ser mais efetiva.
As novas formações familiares exigem estratégias diferentes de aproximação com os responsáveis?
Em certo sentido, todos têm de ter o mesmo tratamento, mas é importante saber que cada caso tem suas particularidades. Mudanças no campo do Direito indicam o reconhecimento de que é impossível ter um padrão único para julgar todos os casos referentes à família e que é preciso levar em conta a especificidade de cada uma. Por exemplo: antigamente havia a figura jurídica do pai de família, que era sempre o pai. Hoje existe o chefe de família, que pode ser um homem ou uma mulher. O ideal é que esse mesmo espírito esteja na escola, que deve reconhecer as diferenças e demonstrar isso na maneira como atua. Não há uma fórmula para lidar com o diverso, mas os educadores têm de se preparar para fazer da escola um espaço de escuta das famílias.
Quando há mais de um responsável pela criança, é tarefa do professor conversar com todos?
Não. Para que seja garantida uma zona de estabilidade para ela, é importante definir quem responderá pelas questões relativas à escola. Se os responsáveis não tomarem a iniciativa, caberá à escola conversar com eles para estabelecer quem será o interlocutor. Essa é uma questão bastante presente, ligada à guarda compartilhada. É lógico que os pais têm o direito de reconstruir sua vida, mas o filho tem de ter estabilidade. É difícil alguém ficar confortável morando dois dias em um lugar, três no outro, alternar fins de semana e ainda a cada momento ter uma orientação.
Até que ponto a escola precisa conhecer a situação do aluno em casa?
Se há o verdadeiro interesse por ele, isso só pode ser positivo. Caso se desconfie de abuso, por exemplo, toda curiosidade é justificável, pois a atitude é de cuidado. Porém, se o educador vai para a conversa com os responsáveis querendo impor um monte de pressupostos morais sobre o comportamento deles, está fadado ao insucesso.
E o contrário: é correto compartilhar com os responsáveis tudo o que se passa na escola com os alunos?
Os pais têm direito de saber o que ocorre com seus filhos. No entanto, não é preciso tomar a iniciativa. A criança necessita de um espaço em que nem tudo o que diz respeito a ela fique exposto. Acho absurdo os berçários instalarem câmeras para permitir que os pais vejam o filho o tempo todo. Uma das funções da escola é dar ao aluno a oportunidade de iniciar contatos com pessoas fora de sua casa, o que é fundamental para a sua independência.