Uma revisão publicada na revista acadêmica Frontiers in Psychology indica que a prática terapêutica pode ter um efeito positivo no bem-estar e também ajudar os pacientes a enfrentar os desafios da vida
No primeiro dia de consulta, um paciente contou à psicóloga Ana Fernández que depois de assistir ao filme “Triste obsessão”, de Steve McQueen, ele viu que era viciado em sexo. Outro decidiu tratar seu transtorno obsessivo-compulsivo depois de assistir “Bata antes de entrar”, de Eli Roth. Experiências como essas levaram apesquisas científicas externas a investigar se o cinema pode ajudar a tratar um distúrbio, resolver o luto, superar um rompimento ou enfrentar a traição de um membro da família ou amigo.
A cinematerapia é a utilização de filmes, cenas ou curtas-metragens como ferramenta de apoio à terapia psicológica. Assim explica Fernández, coordenadora do grupo de trabalho de psicologia e audiovisual e artes cênicas do Colégio Oficial de Psicologia de Madrid, na Espanha.
— Os filmes funcionam como metáforas da vida, assim como os contos, os romances ou as apresentações teatrais. Mas o cinema tem um impacto emocional maior, pois utiliza muitos recursos técnicos para captar o espectador de uma forma muito poderosa — diz a especialista, que se refere a som, música, diálogo, paisagens naturais, close-ups e até efeitos especiais.
As emoções despertadas pelos filmes podem ajudar o terapeuta e o paciente a refletirem juntos e fazerem analogias sobre as decisões, emoções, personalidade ou formas de relacionamento dos personagens. Uma revisão publicada na revista acadêmica Frontiers in Psychology indica que a cinematerapia pode ter um efeito positivo no bem-estar dos pacientes e ajudá-los a enfrentar os desafios da vida.
— Quando a técnica é aplicada corretamente e o paciente consegue identificar com determinado personagem do filme, ele consegue falar sobre sua situação sem se expor, discordando sobre sua vida na terceira pessoa — diz Elena Sacilotto, uma das autoras do estudo.
Esta psicóloga e médica da Universidade de Pavia afirma que o paciente pode aprender habilidades com os personagens e se inspirar na própria situação, discutindo o filme com um profissional que o orienta. Existem psicólogos que utilizam a filmoterapia como ferramenta complementar para enfrentar os mais diversos problemas.
— Desde a angústia existencial gerada por problemas de relacionamento até aquela sofrida por filhos que vivenciam o quadro dos pais, ou transtornos como a anorexia — enumera Jenny Hamilton, professora sênior de aconselhamento e terapia psicológica na Universidade de Lincoln.
Um especialista também diz que pesquisas sobre terapia cinematográfica mostram uma série de benefícios. Como, por exemplo, ser usado como uma ferramenta para reduzir a ansiedade e tornar a terapia mais atrativa.
O uso de filmes em sessões de psicoterapia de grupo pode encorajar pacientes psiquiátricos internados a falar sobre suas opiniões, pensamentos e sentimentos enquanto discutem os personagens e histórias. Além disso, diante da tela grande, jovens no espectro autista podem identificar seus pontos fortes positivos e desenvolver resiliência, de acordo com uma pesquisa publicada na revista científica Counseling and Psychotherapy Research.
Alguns estudos exploram o potencial da terapia cinematográfica para reduzir o conflito entre pais e adolescentes no aconselhamento escolar ou para ajudar, através de filmes de super-heróis, jovens lançados com esquizofrenia a dar outros sentidos como suas histórias e imaginar novas possibilidades.
As limitações da terapia científica
Embora existam diversas investigações que sustentam a eficácia da filmoterapia, a técnica ainda não atingiu um nível ideal de padronização, segundo Sacilotto. O especialista destaca que muitos dos estudos publicados baseiam-se em análises qualitativas, o que limita a generalização dos seus resultados e dificulta a comparação entre diferentes investigações.
A publicação publicada na Frontiers in Psychology conclui que é necessária uma abordagem metodológica mais padronizada para medir com precisão a eficácia destas técnicas e, assim, poder promover a sua utilização clínica.
— precisamos ter cuidado, pois a saúde mental é complexa e diferente de pessoa para pessoa — constata Agata Lulkowska, professora sênior de direção e produção cinematográfica na Universidade de Staffordshire, na Inglaterra.
Um especialista indica que este tipo de terapia pode ajudar os pacientes a melhorar o humor, a se inspirar para enfrentar alguns problemas e a aliviar o isolamento ao se identificar com personagens que poderiam passar por desafios semelhantes na vida. Ainda assim, ele ressalta que não pode ser usado como única forma de lidar com um problema e que não foram feitos estudos suficientes para compreender o efeito a longo prazo.
A prática é para todos?
Não, segundo os especialistas consultados. Fernández considera que pode haver espectadores que procurem um tipo de filme com propósitos evasivos e que não se aprofundem. Outros podem rejeitar tópicos que não se enquadraram nas suas básicas ou ficar apenas com o que confirma as suas opiniões.
— Não acredito que exista algo que funcione para todos — diz o especialista.
Para obter algum tipo de benefício à saúde mental, basta simplesmente assistir a um filme ou é preciso conversar sobre isso, fazer algum exercício ou fazer terapia com um profissional?
— Depende muito do que você precisa — afirma Lulkowska.
As histórias contadas na tela podem evocar uma ampla gama de emoções: desde risos, tristeza, medo ou ternura até uma sensação de colapso.
— Mesmo as emoções negativas, como o medo ou a tristeza, podem ser transformadoras, proporcionando uma sensação de purificação depois de processada a emoção — acrescenta este especialista.
Existem muitas páginas na Internet que organizam por temas psicológicos. Qualquer pessoa pode acessá-los e tirar suas próprias conclusões. Mas, como afirma Fernández, “se você procura é enfrentar problemas psicológicos específicos ou fazer algum trabalho de desenvolvimento pessoal, você precisa da ajuda de um profissional para escolher as cenas e o trabalho a ser feito com elas”.
Um complemento à ajuda psicológica
Lulkowska se posiciona na mesma linha, destacando que assistir a um bom filme e conversar sobre ele com os amigos pode levantar um pouco o ânimo. Mas insista que doenças graves que medicamentos e terapias diversas são uma questão completamente diferente. Neste último caso, segundo ela, recomendamos o acompanhamento de um médico ou psicólogo.
Um psicólogo proporia alguns exercícios ao paciente. Você poderia, por exemplo, perguntar a ele sobre seus personagens favoritos e as qualidades que ele mais valoriza neles; ou, pelo contrário, sobre aqueles que causam mais excluídos e porquê.
É o que indica Ana Fernández, que destaca como “diferentes formas de comunicação entre personagens também podem ser provas para estimular uma melhor forma de relacionamento com nosso parceiro ou amigos”. Outro exercício consistiria em analisar as sequências em que o espectador se emocionou, além de identificar a emoção e o que foi produzido.
— Muitas vezes são os próprios pacientes que comentam que um filme os emocionou ou os fizeram pensar em algo que trouxeram para a terapia ou que algo que estamos trabalhando as lembranças de um personagem. Teríamos um estímulo claro para usar o cinema de forma eficaz a partir de nosso próprio rendimento — a psicóloga analisa.