Mais de 70 pessoas vivem nas ruas de Bento Gonçalves

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Júlio Cesar Correa tem 38 anos e há dois anos dorme na rua

Em 2016 foram contabilizados 67 moradores de rua, e segundo assistente social, o leve aumento foi agravado
por onda de desemprego, mas não houve políticas públicas para diminuir o problema

Bento Gonçalves tem hoje mais de 70 pessoas vivendo em situação de rua, segundo informações da assistente social e coordenadora do Creas, Silvana Romagna. Ela explica que é uma estimativa dos cadastros e que os números podem variar, sendo que – na declaração dela – a maioria dos sem teto são usuários de substâncias psicoativas (drogas ilicitas ou álcool).
A assistente entende que é necessário fazer abordagens pontuais no próprio local. “Temos uma assistente e um educador social responsáveis por esses trabalhos. Nós, na medida do possível, ajudamos com a documentação dessas pessoas, realizamos contato com familiares e em alguns casos conseguimos até emprego”, explica. Ela lembra do caso envolvendo um morador de rua que conseguiu rever um familiar após mais de duas décadas.
“No ano passado conseguimos contactar o filho de um morador de rua. O familiar viajou de Santa Catarina para rever o pai, que não tinha contato há 15 anos. Mas é preciso saber respeitar o momento do morador de rua, e nem sempre ele quer ser ajudado”, lamenta.
Na visão da assistente social um albergue poderia ajudar a resolver questões com pessoas em condições de rua. “Sou a favor de uma casa de passagem ou albergue em Bento. Temos que pensar em algo mais amarrado, que funcione”, sugere.

Casa de Passagem extinta em 2013
A Casa de Passagem de Bento Gonçalves, que era vinculada à Secretaria de Assistência Social (SEMHAS) foi implantada no governo da administração de Roberto Lunelli e extinta em 2013, no início do governo de Guilherme Pasin. A casa abrigava moradores de rua, que tomavam banho, jantavam e dormiam no local. Com capacidade, na época, para treze leitos, abrigando no primeiro ano 690 pessoas. O período de permanência era das 19h às 07h, havendo durante a noite monitores e vigilância. Quem ingressava tinha direito a banho, recebendo um kit de higiente com pijama, sabonete, escova e creme dental.
Conforme relatou na época o então Secretário Municipal de Assistência Social, Roberto Locatelli, entre as pessoas que estiveram na casa, diversos moradores de rua receberam encaminhamento para emprego. Quando havia necessidade, também eram feitos encaminhamentos para tratamentos de saúde, como alcoolismo e drogadição, na estrutura de Saúde Pública do município.
A casa de passagem era classificada como um serviço de alta complexidade do Sistema Único da Assistência Social (SUAS), e atendia homens adultos em situação de risco pessoal e social, em situação de abandono ou cujas famílias ou responsáveis encontram-se temporariamente impossibilitados de cumprir sua função de cuidado e proteção.
Antes de ingressar na casa, todos passavam pela avaliação da equipe técnica do CREAS. Os princípios da Casa de Passagem era suprir as necessidades básicas de alimentação, higiene, limpeza, alojamento e saúde, como também, sociabilizar os indivíduos para que, através de políticas públicas e da oportunidade de geração de renda, os mesmos voltem a ter seu teto. Quem ingressa tem direito a banho, recebe um kit de higiente com pijama, sabonete, escova e creme dental.
Mesmo com a oportunidade desse serviço, a escolha de ir à casa e receber os tratamentos indicados é da pessoa. Já houve casos de quem recebeu o auxílio e encaminhamento para emprego, mas preferiu retornar à condição anterior. Há também casos de pessoas que vivem na rua durante o dia mas à noite retornam às suas casas.
O controle e segurança também era considerado importante. Não eram aceitos indivíduos em conflito com a lei, egressos de ato infracional, em estado de alcoolismo e drogadição.

Há dois anos na rua
Julio Cesar Correa tem 38 anos, é natural de Porto Alegre, e há dois meses mora nas ruas de Bento Gonçalves sem ter contato com os dois filhos (um de 18 e outro de 14 anos). Portador do vírus HIV, Correa encontra na varanda de uma casa abandonada na rua 13 de Maio, um abrigo para dormir. Já passava das 19 horas quando o repórter da Gazeta sentou ao lado do desabrigado, já deitado na fria sacada aberta num colchonete e com uma coberta fina, para conversar. Hoje morando na rua, o sem teto diz que viajava com uma companhia de circo, e que durante as turnês contraiu o vírus HIV. Ele descobriu estar infectado com a doença em janeiro de 2015.
“Eu já conheci o Chile, Equador, Perú, Venezuela, Paraguai, Uruguai e Argentina, e foi justamente num desses países que contraí a doença”, lembra. Natural e Porto Alegre, o andarilho de porte magro e de estatura alta diz precisar da certidão de nascimento para conseguir a medicação e o tratamento com remédios. “Eu estou há três meses sem o meu coquetel de remédios porque não tenho os documentos exigidos. Minha imunidade deve estar lá nos pés, e acredito que eu esteja com a carga viral bem elevada. Eu preciso desses remédios” , implora.
O drama vivido pelo sem teto é um misto de revolta e incompreensão. Quando perguntado sobre o que pensa da cidade, ele não exita em criticar: “as pessoas te olham e julgam, mas ninguém senta aqui para conversar. Falta um albergue aqui em Bento, porque com certeza é necessário. E tenho certeza que se tivéssemos acesso a cursos gratuitos teríamos a chance de mostrar que somos trabalhadores sim”, desabafa.
A conversa com Correa é iluminada pelos faróis dos carros que descem a avenida.

Ajuda humanitária de ONG
Com foco no trabalho social, uma casa espírita localizada no bairro São Francisco recebe dezenas de pessoas carentes todos os dias, que buscam um agasalho, alguém para conversar e muitas delas um almoço. As doações de roupas e alimentos auxiliam, de acordo com o voluntário Lucas Pasquali, as pessoas (alguns dependentes químicos), principalmente com uma refeição quente por dia.
“Servimos almoço para cerca de 80 pessoas ao dia, e já aconteceu de formar filas e ter quase 200 pessoas esperando para conseguir um prato de comida. São crianças, idosos, pessoas de todas idades”, afirma.
A casa espírita, conhecida como Lar da Caridade, além de servir almoços e doar roupas para os necessitados, oferece serviço psicológico. Pasquali explica que o atendimento com uma psicóloga é importante. “Todas as quartas-feiras temos uma psicóloga que conversa com essas pessoas carentes, não apenas financeiramente, mas também que precisam de atenção e alguém para conversar”.
As conversas com a psicóloga e com o grupo de trabalhadores da casa ajuda algumas pessoas a se interessarem também pelas palestras espíritas, conforme explica Pasquali. “O nosso objetivo é sempre ajudar o próximo, mas quando conseguimos levar um morador de rua ou dependente químico até uma palestra espírita é outra grande vitória, principalmente porque sabemos que eles estão se aproximando mais da gente, do fazer o bem”, diz.
As roupas arrecadadas pelo grupo são distribuídas em regiões periféricas de Bento e também em outras cidades do estado. “No inverno temos muita roupa doada e aí começamso a organizar grupos para distribuir as peças. Quando alguém nos informa sobre uma comunidade que esteja precisando, vamos até o local para realizar a doação”, explica.
Pasquali revelou ainda sobre a resistência e o preconceito por parte da comunidade, que aos poucos abraça a causa, sem levar em consideração questões religiosas. “O preconceito ainda existe, porém está diminuindo bastante, e sabemos que o lar e todas as outras instituições tem um papel social forte que o Estado ainda não consegue suprir. Se pudermos dar um pouco mais de conforto e carinho para essas pessoas, já estamos cumprindo o nosso dever”, se emociona.
A casa espírita oferece ainda cursos de costura, pintura, manicure e artesanato. “Hoje cerca de 20 pessoas realizam esses cursos que a casa proporciona, e são todos gratuitos. Sabemos que não basta dar o peixe, é preciso também ensinar a pescar. Quando começamos a ajudar os outros nos abrimos muito mais do que apenas para a doutrina espírita”.

Voluntários arcam com custo mensal da casa
Voluntário há oito anos na casa, Marcos Kalil revela que todo o custo mensal para manter a rotina de doações é superior aos 5 mil reais e é arcada pelos próprios voluntários, com ajuda de doadores esporádicos
“Estamos sempre com pouca verba e o custo mensal entre água, gás e luz ultrapassa os 5 mil por mês. A prefeitura perdeu o projeto da cozinha solidária que tinha verba para servir 100 refeições ao dia. Eles perderam porque não encaminharam o projeto. Nós voluntários, com ajuda de amigos estamos mantendo os serviços de atendimento de alimentação e outros”.
Quem quiser doar alimentos e horas
de trabalho, podem procurar o Lar da
Caridade na rua Júlio de Castilhos,
856, em frente ao posto de
combustíveis Tegon Valenti, ou
pelo fone 3451 7366.