‘Orfeu Negro’: a vez que o Brasil ‘ganhou’ o Oscar, mas não levou

2015-04-10_190211

Como um filme rodado no Rio de Janeiro, com elenco brasileiro, falado em português, músicas de Tom Jobim e, inspirado em uma peça do Vinicius de Moraes ganhou o Oscar, mas quem levou a  estatuetapra casa foi a França?

O filme se passa no Rio de Janeiro. A história é em português brasileiro. As músicas são de Tom Jobim (1927-1994), Luiz Bonfá (1922-2001), Vinicius de Moraes (1913-1980) e Antônio Maria (1921-1964). A produção também é brasileira — mas não só; oficialmente o filme é ítalo-franco-brasileiro.

Quando se diz que o Brasil, até o prêmio deste domingo (2/3) para Ainda Estou Aqui, nunca havia ganhado, é preciso explicar a história desse grande sucesso internacional chamado Orfeu Negro.

Ele ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro de 1960 (categoria hoje chamada de melhor filme internacional). Mas o prêmio foi para a França.

Isso porque a principal produtora foi a francesa Dispat Films, em participação maior do que a italiana Gemma Cinematografica e do que a brasileira Tupan Filmes. O produtor responsável foi Sacha Gordine (1910-1968), francês de origem russa.

“O filme Orfeu Negro […] foi rodado inteiramente no Rio de Janeiro, com quase que a totalidade do elenco sendo brasileira, falado em português, com música brasileira e, sobretudo, inspirado em uma peça do Vinicius de Moraes, que é um brasileiro bem conhecido também… e esses brasileiros foram, sim, creditados no filme”, diz à BBC News Brasil o produtor de cinema Cao Quintas, professor na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM).

Quintas diz, ainda, que “essa discussão é extremamente apropriada no momento, não só pela euforia da indicação brasileira ao Oscar agora [o filme ‘Ainda Estou Aqui’ recebeu três indicações, recorde na história do cinema brasileiro], mas pela discussão sobre regulamentação do streaming no Brasil, que precisa passar por uma definição do que é uma obra cinematográfica brasileira”.

O professor explica que “em relação a coproduções”, “normalmente o coprodutor majoritário indica o produtor delegado do filme, que passa a ser responsável por qualquer aspecto ligado à obra”.

Nesse caso, conforme fica claro nos créditos de abertura, Sacha Gordine é o delegado. “E a França foi o país responsável por indicar o filme para concorrer ao Oscar. Nessa modalidade [filme estrangeiro], os filmes são indicados pelos respectivos países de origem”, esclarece.

De acordo com o regulamento da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas dos Estados Unidos, que confere o prêmio, é nomeado como responsável por cada filme aquele que responder pela produtora com maior participação no trabalho —no caso de Orfeu Negro, a companhia francesa. Isto justifica o fato de que quem inscreveu o filme na competição foi a Dispat Films.

Um caso semelhante que ilustra essa situação foi com o filme O Beijo da Mulher Aranha, de 1985. Dirigido pelo argentino naturalizado brasileiro Hector Babenco (1946-2016), com elenco internacional e falado em inglês, a obra sempre foi considerada mais americana do que brasileira. A coprodução entre os dois países foi indicada ao Oscar de melhor filme de 1986, sendo considerada uma candidata dos Estados Unidos. Não levou.

O dia em que Vinicius de Moraes ressignificou a mitologia grega

“O que posso dizer é que Orfeu Negro é uma das obras mais importantes do Vinicius, e que a França não tem vergonha de ter pegado isso pra ela”, afirma à BBC News Brasil o roteirista de cinema Lusa Silvestre.

Em 1954, o poeta Vinicius de Moraes escreveu uma peça chamada Orfeu da Conceição. Baseou-se no drama de Orfeu e Eurídice, da mitologia grega. Na releitura brasileira, a história clássica foi ambientada em uma favela carioca.

O espetáculo tinha requintes históricos — marcou o início da genial parceria musical de Vinicius com Tom Jobim, que musicou todo o espetáculo.

A peça entrou em cartaz em 1956, no Teatro Municipal do Rio.

A cenografia foi assinada pelo arquiteto Oscar Niemeyer (1907-2012). A encenação ficou a cargo do Teatro Experimental do Negro de Abdias Nascimento (1914-2011) — foi a segunda vez na história que um elenco de atores negros protagonizou uma peça no elitista Municipal carioca.

O enredo grego do amor trágico entre Orfeu e Eurídice foi transposto para um feriado de carnaval. Os sentimentos presentes na trama original seguem na releitura poética-dramatúrgica de Vinicius: tem ciúmes, tem sangue, tem vingança. Tem amor e tem morte.

Havia um Brasil modelo exportação nessa história, mesmo que não fosse essa a intenção de Vinicius. Favela, samba, negritude, Rio de Janeiro, carnaval: ingredientes considerados interessantes e cinematográficos.