Relacionamento abusivo: quando o felizes pra sempre não acontece

2015-04-10_190211

Colunista: Viviane Tremarin – Pós-graduanda em Terapia Cognitivo-Comportamental

Ah, aquele doce sonho que a Disney pintou em nós. O príncipe montado no cavalo branco chega, nos promete mundos e fundos, a gente sonha com a casinha de chão num terreno espaçoso para as crianças correrem e já sabe até em que loja vai comprar a cadeira de balanço para tomar café no fim do dia. Então de repente o príncipe começa a socar as paredes deixando marcas nela, ele deixa de regar a grama que seca, ele usa todo o espaço do pátio pra construir muros gigantes, e a gente já não tem mais certeza se quer colocar nossa cadeira ao lado da dele, mas quando olhamos para ela percebemos que ele já acorrentou as duas juntas. O que aconteceu com o príncipe? Quando foi que ele se transformou no lobo mau? Em que momento ele soprou as casas construídas em mim e comeu minha autoestima? E quando nos damos por conta, estamos no meio de uma floresta escura catando as migalhas do chão para tentar encontrar o caminho de volta, nos perguntando “aonde o meu felizes para sempre foi parar? ”

Realidade
Parece só um conto de fadas com um final triste, mas é a realidade de muitos casais que vivem um relacionamento abusivo. Quando falamos sobre isso a primeira coisa que vem à mente é violência física, e apesar dele também envolver agressões, o abuso é um buraco bem mais em baixo. O relacionamento abusivo é definido como um tratamento inadequado que inclui qualquer comportamento ou atitude cuja intenção seja assustar, intimidar, aterrorizar, manipular, magoar, humilhar, culpar, injuriar ou ferir. Se para você “abuso” é uma palavra difícil de entender, você pode substituir ela adequadamente por maus tratos. Você já viveu ou vive uma relação na qual é mau tratada?
Percebeu que essa pergunta foi feita no feminino? Você pode me devolver ela: “só homens são abusivos? ”. Não. Mulheres também podem ser manipuladoras e controladoras, mas se considerarmos que em 2020 o país teve 648 casos de mulheres que foram assassinadas por motivação relacionada ao gênero, você vai entender o porquê do meu direcionamento. E se esse número te assusta da mesma forma que assusta a mim, fica mais fácil compreender que reconhecer o abuso dentro do relacionamento é um fator de proteção à vida.
Faz pouco tempo que começamos a discutir sobre isso. Talvez você esteja lendo sobre relacionamento abusivo pela primeira vez agora. Mas as novelas já retratavam e romantizavam esse relacionamento há muito tempo. Inclusive, recentemente reprisou “fina estampa” e eu fiquei chocada ao reassistir o casamento de Celeste e Baltazar, recheado de violência sendo embalado pela música “amor covarde” do Jorge e Matheus. Se você assistiu a novela lembra que Baltazar era um personagem extremamente controlador, tanto com a esposa quanto com a filha, e que além das agressões físicas, não perdia uma oportunidade de diminuir e atacar a autoestima de sua esposa. Como quando ela resolveu se maquiar e ele a humilhou por isso. Nas cenas da novela e na vida real a dinâmica do relacionamento abusivo é a mesma: depois da briga vem a lua de mel. Baltazar aparecia com flores e prometia a mulher que mudaria enquanto fazia mil juras de amor, e a trilha tocava “quando a gente fica junto, tem briga; quando a gente se separa, saudade; quando marca um encontro, discute; desconheço um amor tão covarde”. Olha Jorge e Matheus, eu também desconheço chamar isso de amor, é só covardia mesmo.

Eu estou mencionando isso por duas razões: a primeira é o discurso. Na fase da lua de mel vem as promessas de mudança, mas elas precisam ser acompanhadas de atitudes. A fala sempre busca coerência na hora de se explicar, é o comportamento que nos mostra a verdade. O segundo é porque o relacionamento dos dois não era abusivo apenas por conta das agressões. Ele constantemente humilhava-a, tinha crises de ciúme e de possessão e porque eu friso isso? Ainda existe uma porcentagem muito grande de mulheres que se mantém numa relação abusiva porque não foram agredidas, e achar que só existe abuso quando há agressão faz com que as mulheres acreditem que a forma como os parceiros as tratam é aceitável desde que não haja agressão. E ensina aos homens que tudo é permitido desde que não ultrapassem a barreira da violência física. Saber como merecemos ser tratadas e não aceitar nada menos do que isso, também é protetivo. É amor-próprio.

Todas as formas de abuso são prejudiciais e trazem consequências para quem é vítima dele. Alguns são explícitos e fáceis de reconhecer, mas alguns são tão sutis que nos causam confusão e a gente não sabe ao certo se está passando por isso ou não. Algumas táticas do abusador podem ser tão discretas que não parecem ameaçadoras, por isso é importante estar atenta à como você se sente com aquilo.

Como age o abusador
O abuso sutil é o uso indireto da ameaça, intimidação ou agressão por meio do humor, manipulação, crítica ou punição, na tentativa de controlar ou dominar o outro. Sabe aquele cara que faz piada com a sua aparência na frente dos amigos? Ou aquele que te dá três dias de gelo depois de você negar algo que ele queria? São táticas sutis de manter o seu controle. Não caia nessas sutilezas só porque elas parecem inofensivas. O relacionamento abusivo é como cozinhar rã. Se você colocar ela na panela com água fervendo, ela vai pular para fora. Mas se você for aquecendo a água aos poucos, ela vai se acostumando com a temperatura até estar cozida. Será que ele não é tão abusivo assim ou está te cozinhando em água morna?

A gente precisa entender o abusador como uma pessoa que precisa ter controle e poder sobre a sua vítima. Sendo assim, para ele, o que importa é vencer nessa dinâmica. O relacionamento é como um jogo para o abusador no qual ele sempre vence e eu vou te explicar o porquê: quando você tem um problema dentro da relação você quer resolver ele, certo? O seu foco está no problema que precisa ser resolvido naquele momento, mas parece que você não consegue abordar ele, porque o abusador diz que o problema é outro, você se sente confusa e se atola nos detalhes daquilo que ele reconhece como o problema. Quanto mais você tenta resolver, mais parece que ele luta contra você e você não entende porque raios ele não quer encontrar uma solução para o problema. Então você termina a discussão exausta, porque não importa o quanto você se esforce, você não chega a lugar nenhum. Ele nitidamente não se esforça para melhorar o relacionamento, atender as suas necessidades ou fazer você se sentir melhor. Você sente que está fazendo todo o trabalho sozinha. Enquanto isso ele te faz correr em círculos e só observa você se sentir culpada. Ele muda as regras o tempo todo para que você nunca consiga fazer o suficiente para satisfazer ele. Não importa o quanto você tente, nunca é o bastante. Isso acontece, porque para o abusador, o foco não é o problema real, e sim a vitória. E ele vence quando você abandona o seu problema para se dedicar ao dele. Ele vence enquanto você se esforça para manter a relação. Ele vence enquanto você tenta se encaixar nas regras dele.

Pode ser qualquer um
O abusador não tem rosto. Ele pode ser aquele cara legal que teus amigos adoram. Aquele que é superengraçado e divertido. Aquele que sua amiga não entende porque tantas reclamações já que ele parece te amar tanto. O abusador tem qualidades, é amoroso, é gentil… e tudo isso faz você se questionar ainda mais se aquela é uma relação abusiva. Então você se sente confusa e aos poucos vai abandonando pequenos pedaços de si mesma, pensando que não são importantes ou não são suficientes, afinal “ele é tão legal”. E aos poucos, esse jogo vai minando sua autoestima, sua autoconfiança e quando você se dá conta, está exatamente aonde ele quer: presa a ele, sem perspectiva de fuga, controlada, catando as migalhas como na nossa história inicial.
Se seu parceiro está fazendo algo que faz você se sentir mal, preste atenção. Se você se percebe em uma relação abusiva busque ajuda. “Em um relacionamento saudável os dois devem ter voz ativa. Ambos devem se sentir livres para falar sobre suas necessidades e desejos e ter sua vontade respeitada. Todos têm direito a recusar algo queprovoque desconforto, sem medo de punição. Você não pode ser humilhada, criticada ou degradada por evitar esse tipo de sensação” –Avery Neal.
O amor real não fere, não humilha, não oprime e não controla.