O homem no ônibus e uma sociedade doente

2015-04-10_190211
Camila Paese Fedrigo Advogada. Mestranda em Direito. camila@cpfadvogada.com

Imagine chegar em casa e ter que tirar do pescoço, do braço, o gozo de um desconhecido. Como fica o guardanapo que desliza naquele líquido molhado. A mulher, encharcada com a violência que grudou na pele. Imagine sentir nojo e náusea de tocar na própria pele. Imagine sentir nojo de tocar o próprio corpo, alvo de outrem. Relembrar, a cada centímetro que limpa, da ação (in)voluntária criada pela lascívia de alguém que violou-te. Imagine o primeiro banho dessa mulher após essa violação, a espuma branca, que nunca, que jamais será suficiente para limpar-lhe o corpo. Limpar-lhe a alma.
Diego Ferreira de Novais, 27 anos, ajudante de serviços gerais é o nome dele. Foi preso na semana passada por ejacular em uma mulher dentro de um ônibus coletivo, mas em audiência de custódia, guaridado pelo Ministério Público, baseado em um Código Penal desatualizado e pelo juiz José Eugênio do Amaral que aplicara a semântica do jeito mais horrendo que poderia ter aplicado, foi solto. Na manhã do sábado, dia dois de setembro, foi detido novamente, ao atacar outra passageira, nas mesmas circunstâncias, na região da Avenida Paulista. Desta vez, foi indiciado por estupro, porque teria tentado impedir a vítima de fugir dele – são estas as informações da Polícia Militar e da Polícia Civil de São Paulo.
Na primeira vez, o juiz considerou apenas a violência física, quando deveria ter considerado haver a violência simbólica, moral e psicológica de um ato desse calibre. Na sociedade é importante que os juristas e os civis discutam a respeito do artigo 213 (Lei do Estupro) do Código Penal pode ser legitimamente interpretado e aplicado quando, independente de violência física, exista violência outra como essa.
O artigo de lei diz “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permite que com ele se pratique outro ato libidinoso”. Um excelente professor me de português, autodidata, hoje advogado, escreveu que o legislador pensou uma coisa, mas a realidade dos fatos da sociedade doente suplanta a criatividade daquele que elabora as leis. Pergunta ele “A violência precisa ser física? O constrangimento precisa ser explícito e impositivo ou pode ser fortuito, tipo uma ejaculada na cara?” E completa: “Que dificuldade ser mulher neste país! Além do assédio e da violência, ainda tem que ser vítima da semântica.”
De mais a mais, pesquisando casos fora de terrae brasilis, eu me senti particularmente preocupada quando soube que em Turim, um juiz havia determinado que a masturbação em público não era considerada crime, depois de rejeitar o pedido de prisão de um marroquino que praticou o ato e ejaculou nas roupas de uma mulher dentro de um ônibus na Itália. As alegações do juiz foram praticamente as mesmas do juiz brasileiro, que seria um “simples ato obsceno” e que “não há agressão sexual sem contato físico com a vítima”. A decisão ocorreu após o Tribunal analisar o caso da italiana Alessandra Ceccheli. O caso foi confirmado por câmeras de segurança instaladas dentro do coletivo. E pior, a Corte Suprema da Itália, anteriormente, já havia decidido que masturbação em público não era crime, desde que não fosse realizada na presença de menores – isto é, a medida é isenta de infração.
Voltando ao caso brasileiro, depois de me sentir profundamente incomodada com o caso do país de primeiro mundo, digo que “Diego Ferreira de Novais” é apenas um nome que representa o aspecto doentio da nossa sociedade. Emile Durkheim foi um dos primeiros sociólogos a discutir isso no século XIX. Estudando o suicídio, pontuou que há épocas em que o senso de sociedade enfraquece e isso deixa os indivíduos mais às voltas com seus próprios demônios. Isso ocorre durante as guerras, períodos de instabilidade econômica, incerteza política, verbi gratia.
A sociedade, fragilizada, seria menos capaz de fornecer laços sociais. Portanto, estaríamos menos ligados uns aos outros, e mais sozinhos, vulneráveis aos nossos instintos iniciais. Durkheim, em seus estudos, entende que sem os lastro sociais, toda sorte de doença mental aumentaria, fazendo crescer, de início, o número de suicídios.
Entretanto, isso não vale tão somente para os transtornos mentais, mas também para atos desrespeitosos e de violação de outras pessoas. Uma sociedade doente desperta a doença singular do ser individual. Seja uma doença mental propriamente dita, ou um ato sociopático como o descrito nas primeiras linhas, ocorrido nos ônibus, nos últimos dias.
Um segundo sentido pelo qual podemos chamar isso de doença passa pela discussão do sexismo. Não são escassas as demonstrações machistas, e os crimes contra as mulheres são frequentes. Mais do que isso, eles assustadoramente têm aumentado nos últimos anos. Apenas a título de exemplo, em 2016 a Delegacia de Polícia do Metropolitano de São Paulo registrou um aumento de cerca de 350% nos casos de abuso sexual cometido nos trens de metrô em comparação com o ano anterior. Entendeu? Abuso sexual cometido em trens de metrô!
Vivemos um grave crise moral, política e econômica – o senso de pertencimento a uma sociedade regida por leis está cada vez mais fraco e será, infelizmente, cada vez mais frequente vermos relatos como esse, onde a doença individual aflora. Eu sou da linha do Direito Penal Mínimo (que luta contra punições excessivas), mas não quando estamos falando de crimes contra as mulheres. Sou contra colocar na cadeia gente que furta comida, porém é impossível abrandar o sistema penal punitivo em casos de violência contra as mulheres. E, nesse caso, há um abrandamento lamentável.
Talvez o traço mais significativo da violência contra a mulher seja o abrandamento que se faz para penalizar quem a comete. Nunca ninguém quis ver com os olhos abertos, nunca ninguém a encarou com muita seriedade, e até hoje – e a prova é a falta de tipificação penal de fato do crime que ocorreu – ninguém de fato se preocupa em quantifica-la. Mas se quantifica o roubo do litro de leite, do pão, do pote de marmelada. Talvez agora, que a invisível violência contra a mulher esteja saindo do lar e aparecendo nas ruas, alguém tenha coragem de mudar isso. Temos um legislativo que ganha milhares de reais acovardado, de maioria machista, cis, conservadora, evangélica, que têm grande interesse me manter a mulher submissa. Eu creio que um Judiciário forte, a partir de reiteradas decisões, possa fazer valer os direitos e tratados conquistados e assinados que efetivamente protejam as mulheres – todas elas, por sexo biológico ou per enquadramento de gênero como as travestis e as transexuais.