Fadiga da quarentena: mecanismo psicológico incentiva o abandono do confinamento

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Cansaço psicológico, narrativas conflitantes de esferas do governo e influência social criam cenário que estimula as pessoas a ignorarem as recomendações de isolamento

As recomendações de distanciamento social já perduram no Brasil há mais de quatro meses. E, conforme o período de isolamento se estende, a tarefa de permanecer em casa se torna mais complicada, mesmo para os favoráveis ao confinamento. Isso porque, com o passar do tempo, a tendência é que os mecanismos psicológicos relativos aos perigos do novo coronavírus relaxem e que surja a “fadiga da quarentena” — um sintoma que atinge cada vez mais pessoas e que pode levá-las a quebrarem os protocolos —, como explica o professor Andrés Eduardo Aguirre Antúnez, do Instituto de Psicologia da USP: “Ficar em casa, para quem pode ficar, também é difícil. Vamos pensar em quem tem família, filhos pequenos, pais em teletrabalho, crianças em teleformação. Isso claramente desgasta”, aponta o especialista.

Apesar de o sintoma, somado às medidas de flexibilização do isolamento social, incentivar as pessoas a abandonarem a quarentena, como comenta o professor Gonzalo Vecina Neto da Faculdade de Saúde Pública, caso as pessoas passem a contrariar as recomendações haverá maior propagação. Ele ainda relembra que “flexibilização não é sinônimo de liberou geral”.Além do cansaço natural acarretado pelo isolamento, outros fatores atuam sobre o psicológico humano estimulando o abandono do confinamento. Um exemplo é a falta de uniformidade entre as narrativas e políticas públicas: o discurso anti-isolamento, adotado pelo governo federal, confunde a população, gera dúvidas sobre a efetividade do distanciamento e, portanto, leva as pessoas a saírem de casa.

Vontade de abandonar o isolamento
Outro incentivo é o comportamento alheio, este — de acordo Aguirre Antúnez — “interfere em nosso juízo”. Aqueles que, mesmo com todos esses estímulos, permanecem em casa são obrigados a ver seus esforços irem por água abaixo, já que a maioria das pessoas não vêm seguindo as recomendações e, por causa disso, os efeitos negativos da pandemia não cessam: “Os que veem outros não respeitando a quarentena podem, por meio de um contato psíquico, relaxar e sair de casa”, aponta o professor. Tal conduta, de abandono das medidas de isolamento, vem se mostrando mais comum entre os jovens. O que, segundo Aguirre Antúnez, é natural, visto que o jovem tende a ser mais impulsivo. As pessoas das faixas etárias mais baixas também podem se sentir menos
vulneráveis por estarem fora do grupo de risco da doença. Mas, como explica o professor Vecina Neto, essa sensação é ilusória e mesmo os mais jovens devem se ater às recomendações, já que correm risco de contaminação e até morte.

Escapada segura

A recomendação, sempre, é permanecer em casa. Por isso, o infectologista Estevão Urbano frisa a necessidade de a pessoa se reinventar. Ele orienta que a população se movimente e distraia dentro da residência.  Agachamento, alongamento e leitura de livros são opções. “Tem vários aplicativos e vídeos disponíveis para ajudar neste momento”, destaca. Mas, para quem não está suportando o confinamento, especialistas listaram duas dicas que, se seguidas à risca, diminuem o risco de contaminação pelo coronavírus.  A pessoa pode ir ao supermercado a pé, e priorizar um estabelecimento mais longe de casa. Isso força ela a caminhar pela cidade. Mas tem que ser em um horário de pouco movimento, nunca no final da tarde. E ela deve escolher vias sem aglomeração. Ou andar de carro pela cidade, mas lógico que sempre com o vidro fechado.

O desgaste cerebral durante a quarentena

Segundo a psicologia, o ser humano consegue absorver situações indesejadas, com forte estresse, apenas por um curto período. Depois, a mente começa a relaxar, mesmo diante dos riscos. Nesses casos específicos da pandemia, o fenômeno pode ser classificado como “fadiga da quarentena” ou “fadiga do isolamento”.”Nosso corpo, inicialmente, se prepara para receber um ataque, revidar, fugir ou se esconder. Só que ele está preparado para aguentar essa situação por pouco tempo. Como a quarentena foi se estendendo, o cérebro entra em um desgaste”, explicou a psicóloga Sylvia Flores. De acordo com a especialista, isso explica porque no início da pandemia, em março, a adesão ao isolamento era maior. “Depois de aproximadamente duas semanas, a pessoa não consegue mais reconhecer o perigo. Por mais que se fale que estamos no pico, que corremos o risco de um colapso, esse medo começa a decair”, esclareceu. Neste momento, mesmo quem defende e sabe da importância da quarentena se permite pequenas escapadas.

Estratégias:

Apesar da fadiga, não é o momento de descuidar das medidas de prevenção. Sentir desconforto e cansaço é normal. Para enfrentar a exaustão, as especialistas sugerem:

Tenha paciência consigo mesmo e com o outro. Cuidado com os diálogos. É preciso investir na tolerância;

Encare a realidade com seriedade, sabendo que o corpo tem limites. Adoecer é um risco, mas é possível adotar uma série de medidas que minimizam os riscos;

Enfrente a realidade com seriedade, sem negar o risco que existe;

Tristeza, desânimo, cansaço, frustração, ansiedade, angustia, são sentimentos que surgem, podemos passar por eles e, acima de
tudo, precisamos lidar com eles;

É importante acreditar que essa situação vai passar, as coisas vão melhorar. Se perguntas: O que eu posso fazer no meu dia a dia para trazer leveza, um pouco de conforto? Que medidas e que recursos eu posso buscar para encarar essa situação um pouco mais leve?

Se o sofrimento é muito grande e a pessoa não está encontrando, dentro do seu dia, momentos em que se sinta melhor, é necessário buscar a ajuda de um profissional.

Mitos e covid-19

A pesquisa Ipsos Essentials, feita em 16 países, avaliou o grau de aceitação da sociedade sobre teorias a respeito da transmissão do novo coronavírus. No Brasil, 18% acreditam na eficácia da hidroxicloroquina. No Reino Unido, em contrapartida, só 2% creem que a medicação traz resultados contra a covid-19. Ainda entre os brasileiros, 7% acham que comer alho protege da doença. Sobre imunidade, 19% dos brasileiros acreditam ser verdade que, se um teste de anticorpos mostrar que uma pessoa foi previamente exposta ao vírus, ela não corre o risco de ser infectada novamente. A voz da ciência, contudo, diz que ainda precisamos esperar para ter clareza sobre essa hipótese do “passaporte imunológico”.

Busque o equilíbrio

Um ponto importante é buscar equilíbrio entre o trabalho e o autocuidado, se você faz parte do contingente de profissionais que segue trabalhando em casa. Procurar colocar no seu dia atividades que você gosta, que gerem reflexões e insights sobre você mesmo e estimulem o autocuidado é essencial para tornar esse processo menos doloroso e aliviar essa sensação de cansaço. Manter o contato com as pessoas de fora, como fazer ligações para familiares e amigos, é outro ponto que não pode ser deixado de lado. Essas conexões são o que nos ajudam a sair também da sensação solitária. Segundo o psicanalista Ronaldo Coelho, buscar novas formas de se relacionar, de gerar renda e de ocupar o tempo dentro de casa é importante também para dar um sentido aos dias confinada em casa – isso significa que montar e manter uma rotina certa é ponto-chave. Além de, claro, desenvolver o discernimento sobre quando, realmente, a saída de casa é necessária e quando ela é dispensável.