Animal, demasiado humano.*

2015-04-10_190211
Camila Paese Fedrigo Advogada. Mestranda em Direito. camila@cpfadvogada.com

Recentemente eu fui convidada por um professor do IPA, que foi mestrando da UCS, para integrar um grupo de pesquisa de direitos dos animais. E, claro, como eu não tenho mais nada o que fazer (sic), topei.
Mas o que eu venho dizer aqui é mais sobre mudança de paradigmas do que sobre o que tenho visto no grupo de pesquisa. No Direito das Famílias vêm surgindo decisões que têm concedido guarda compartilhada de donos ou pais de animais de estimação.
O tema é instigante: faz a gente pensar no que nos distingue dos outros mamíferos, ou até outros animais não-mamíferos. Em termos qualitativos, poder-se-ia dizer que teríamos uma capacidade maior de simbolização, de consciência de tempo, de ética e moral, mas, mais do que tudo, teríamos a capacidade de questionarmo-nos e angustiarmo-nos acerca da nossa própria identidade, do nosso sentido existencial.
Freud, em 1917, marcou três grandes golpes em nosso narcisismo – primeiramente, o desferido por Copérnico, que o a Terra, e consequentemente o homem não é o centro do universo, em seguida o desferido por Darwin, demonstrando que o homem está na escala da criação, não sendo, pois, único e mais próximo da divindade e, por último, o golpe resultante da descoberta que o homem não é senhor da sua consciência – estamos, todos nós, sujeitos ao desejo do inconsciente.
Pois bem, tratar o diferente como “coisa” é prática social. A mulher, por muito tempo, foi coisificada – e ainda é. E precificada, muitas vezes. Os transexuais, as travestis são “coisas” que a sociedade esconde dela mesma, infelizmente. Os animais, no nosso atual Código Civil ainda são “coisas”. Tratar por “coisa” tem a ver com posse, dominação, subserviência, uso a serviço do desejo e vontade do possuidor – e isso se aplica a pessoas e a animais.
Eis que a mudança paradigmática em relação aos seres agora sencientes – os animais – parece uma luz no fim do túnel da desesperança que Bauman lançou com o amor líquido e as relações fugazes, que se compram e se trocam como roupas íntimas. Parece que se está tendendo a uma valorização do afeto, defendido por alguns até como categoria jurídica (como no caso das decisões que deferem indenização por abandono afetivo), mas sem dúvida a valorização do outro. O afeto começa a ser percebido no encostar do rosto da minha gata na minha mão, por exemplo.
Nessa senda, no percurso de valorização dos outros animais, parece que a sociedade líquida pós moderna que busca o imediatismo da satisfação, começa a (re)valorizar a fidelidade e a lealdade. Exatamente aquela que os animais têm para conosco. É aquela questão do cachorro ser o melhor amigo do homem. Ora, o melhor amigo do homem deveria ser o homem. E não seu lobo.
E partindo dos animais domésticos ampliamos o olhar para os animais selvagens e para o desequilíbrio que ameaça o planeta, que foi causado muito a pretexto de dominar a natureza, de usufruir recursos que pareciam ser inesgotáveis. Nós exercemos uma forma de domínio antropocêntrico destrutivo e projetivo – conhecer e dominar a natureza se torna uma excelente forma de descobrir a nossa própria essência, identificando nossos impulsos selvagens nos animais selvagens, e a perdida lealdade, na fidelidade dos cães, verbi gratia.
Ademais, há exemplos de violência e destruitividade que, infelizmente, permeiam esse “reino humano”, que não ocorrem no reino animal. Há uma luta constante por comida, mas não há violência perversa, a sangue frio. Assim, quando passamos a olhar a natureza, o que me parece é que se passa a reconhecer nossa espécie como dotada de impulsos não tão elevados ética e moralmente capaz de nos diferenciar dos outros mamíferos. Ou pior, nos faz ética e moralmente pior que eles.
No meio desse imbróglio, o Direito das Famílias eleva o afeto a uma categoria evolutiva superior quando se fala da re-humanização do direito. O afeto é tudo, princípio ou valor jurídico – o que projetamos no outro é exatamente o que se carrega dentro de si.
Se pensarmos que no reino dos animais não há nem de perto a violência e destrutividade que encontramos na espécie humana, pois lá não existe feminicídio, lgbtcídio (e sim, existem animais homossexuais!), deveríamos pensar numa inversão evolutiva. Talvez fizéssemos uma animalização do direito. Uma animalização dos relacionamentos. Uma animalização da sociedade. Quem sabe?

*O título do texto faz alusão ao livro de Friedrich Nietzsche (1844-1900) Humano, Demasiado Humano, um Livro para Espíritos Livres, publicado em 1886.