Em meio à dificuldades, haitianos buscam uma vida melhor

2015-04-10_190211
Aulas de português são oferecidas Pela Pastoral do Imigrante e pelo IFRS

Problemas na comunicação verbal e escrita, custo para validação de diplomas e entraves na hora de obter informações dificultam adaptação e acesso às vagas de emprego para haitianos estabelecidos no país

Para os haitianos que escolheram recomeçar a vida no Brasil após a devastação causada pelo terremoto em seu país em 2010, a luta diária é pautada por sacrifício e superação. Eles chegaram em busca de trabalho, munidos de esperança e persistência, mas para muitos, a realidade tem sido uma mãe muito severa.
Só em Bento Gonçalves (segundo dados fornecidos pela Secretaria de Habitação e Assistência Social, referentes ao Cadastro Único – dezembro/2016) são mais 760 haitianos de baixa renda que vivem e trabalham (ou estão em busca de emprego) em nosso município. Mas a busca de oportunidades por parte desses imigrantes esbarra em muitas dificuldades.
Além do preconceito (que ainda persiste, infelizmente) e da crise econômica que paira em nosso país, questões envolvendo a comunicação verbal e escrita e até mesmo o alto custo para validação de diplomas obtidos fora do Brasil dificultam a adaptação dos recém-chegados e seu acesso às vagas de trabalho.

Língua portuguesa ainda é uma difícil barreira
O crioulo (também conhecida como créole) é o idioma falado pela maior parte da população do Haiti e é baseado na outra língua oficial do país: o francês. Assim, muitos imigrantes que chegam ao Brasil enfrentam uma grande dificuldade na hora de aprender o português falado aqui. A maioria não dispõe de recursos financeiros para pagar um curso particular e a saída é a difícil prática no dia-a-dia – entre tentativas e erros.
Essa dificuldade envolvendo a comunicação é uma das grandes barreiras na hora de agarrar a tão sonhada oportunidade de trabalho. Muitos imigrantes até conseguem emprego sem dominar a língua portuguesa, mas essa questão do idioma gera um grande desconforto na rotina diária e uma penosa adaptação.
Esse é um dos problemas enfrentados pela haitiana Fredette Moïse, 40 anos, há dois morando no município. Com a ajuda de um amigo, ela explica que ainda está desempregada porque não domina o português e está preocupada com a dificuldade em conseguir trabalho. Para ela, como para muitos outros, esse é um ponto decisivo na hora de encontrar novas oportunidades.

Iniciativa oferece cursos gratuitos para imigrantes haitianos
Mas em meio a tantas dificuldades, surgem iniciativas importantes, que oferecem uma nova chance para os imigrantes que adotaram o Brasil como seu novo lar. Em Bento Gonçalves, uma entidade religiosa e uma instituição de ensino público provaram que boa vontade, esforço mútuo e interesse genuíno são capazes de gerar resultados surpreendentes, que podem mudar a vida de muitas pessoas.
Nos últimos anos, o Instituto Federal do Rio Grande do Sul- Bento Gonçalves (IFRS) e a Paróquia Santo Antônio, através da Pastoral do Imigrante, oferecem cursos gratuitos de Língua Portuguesa, voltados para os imigrantes haitianos que residem no município. Os dias e número de turmas são definidos no início de cada ano, mas em geral, são pelo menos duas a cada ano, tanto na Paróquia quanto no IFRS.

Aulas de português são oferecidas Pela Pastoral do Imigrante e pelo IFRS

Segundo o professor Rubilar Simões Júnior, que coordena os cursos oferecidos pelo IFRS desde 2013, a iniciativa, surgiu a partir do contato da Associação dos Imigrantes Contemporâneos de BG e da Sociedade 20 de Novembro com a Direção do Campus. Ele explica que em 2017, serão oferecidas 40 vagas para os cursos de nível básico de Língua Portuguesa e Cultura Brasileira (mais informações no box abaixo).
Para a Irmã Angela Soldera, que coordena a Catequese e a equipe da Pastoral do Imigrante (Paróquia Santo Antônio) e acompanha de perto o drama dos haitianos no município, a dificuldade com a língua realmente representa um enorme problema em todo o processo de adaptação, não só na hora de conseguir emprego. Ela explica que a oferta de cursos só não é maior por falta de professores que abracem a iniciativa.
Mas também chama a atenção para a dificuldade de deslocamento de muitos haitianos para conseguir frequentar os cursos, uma vez que muitos tiveram que se mudar para bairros distantes, por causa, principalmente, do custo de aluguel e exigências para contratos. Alguns locais não são atendidos de forma regular por transporte público e a maioria não possui veículo próprio. Assim, dependem de caronas ou de horários alternativos para poder participar das aulas.
A Irmã ressalta que toda a ajuda é bem-vinda. “Sempre precisamos de voluntários, não só para ampliarmos o número de vagas para os cursos oferecidos, mas também para atender os imigrantes mais necessitados em outras ações desenvolvidas na Pastoral”. Porém, ela aponta também outra questão na hora de preencher as vagas oferecidas: a dificuldade de fazer chegar a todos que necessitam as informações relativas às aulas. “Tentamos, dentro do possível, manter uma boa comunicação com as famílias cadastradas e com os que chegam, justamente para que tenham acesso à ajuda que podemos dar”, explica.

O importante papel da Pastoral junto às famílias
E é justamente a proximidade da Pastoral com a dura realidade dos imigrantes haitianos que faz com que importantes inciativas como essa surjam, buscando atender – dentro das possibilidades – às necessidades não acolhidas pelo poder público ou outras entidades.
Segundo Irmã Angela, a Paróquia Santo Antônio mantém o cadastro de pelo menos 600 famílias de baixa renda oriundas do Haiti, que recebem, mensalmente, uma cesta básica. Todo o trabalho, tanto de captação, como separação e entrega de itens é voluntária. “O maior problema ainda é acompanhar de perto, visitar todos os cadastrados para ter informações mais precisas sobre a situação de cada núcleo familiar”, explica a religiosa.
Para a coordenadora da Pastoral, essa tentativa de manter o constante acompanhamento das famílias é necessária. “Eles transitam muito. Alguns não conseguem trabalho aqui, então ficam um tempo e depois se deslocam para outras localidades, até mesmo outros estados. Da mesma forma, recebemos continuamente imigrantes haitianos que chegam de outros lugares do país pelos mesmos motivos”, destaca.
Por sinal, as ações da Pastoral do Imigrante são citadas pela maioria dos haitianos ouvidos pela reportagem. Muitos se dirigem diretamente à Paróquia antes mesmo de buscar a Secretaria de Habitação e Assistência Social ou outras entidades ligadas ao poder público, principalmente pela indicação de outros imigrantes. Inclusive na hora de encontrar moradia.
Segundo a religiosa, a burocracia e as exigências na hora de alugar imóveis faz com que muitos imigrantes busquem ajuda da Paróquia para encontrar um teto. “Em alguns casos, quando podemos, ajudamos a intermediar essas negociações, pois muitos sequer têm emprego fixo e não conseguem atender à exigência de fiador ou diversas outras regras na hora de fazer um contrato. E não podemos deixa-los na rua sem tentar algo”, frisa a Irmã.

Unindo esforços para serem ouvidos
Nascido no Haiti há 37 anos, Ronal Dorval chegou ao Brasil em 2012. Casado e pais de duas meninas, de 14 e 17 anos, mesmo tendo enfrentado muitas dificuldades, já se considera adaptado à vida local. Mas a percepção da necessidade de se organizarem para ajudar os conterrâneos fez com que reunisse esforços e junto com outros haitianos, fundasse em 2013 a primeira Associação de Direitos Humanos dos Imigrantes Contemporâneos.
Com mais de 320 associados, a entidade presidida por Dorval (edevidamente registrada) ainda não possui sede própria e essa é uma das dificuldades na hora de realizar as reuniões. E até mesmo nessa questão, a Pastoral do Imigrante auxilia de algum modo. “As primeiras reuniões foram feitas num local junto à Paróquia. Mas atualmente, estamos em busca de um local fixo, onde possamos reunir as pessoas e discutir os problemas que enfrentamos diariamente”, explica o presidente da Associação.
Mas Ronal ressalta que apesar de serem recebidos pela Secretaria de Assistência Social ou mesmo por algumas autoridades do município, não conseguem marcar um encontro com o Prefeito em nome da Associação. “Já tentamos diversas vezes, fomos recebidos por outras pessoas, mas queríamos conversar diretamente com o Prefeito, para levar até ele as nossas necessidades e falar sobre as dificuldades que ainda enfrentamos”, desabafa.
A dificuldade em serem recebidos pelo Prefeito também é apontada pelo vice-presidente da Associação, Mistrale Losin, 39 anos, que há seis reside em Bento Gonçalves. Ele reafirma que foram muitas tentativas, mas nenhuma teve resultado. “Achamos importante sermos ouvidos pelo Prefeito. Agora, nós moramos aqui, fazemos parte dessa comunidade. Também somos cidadãos” explica. E chama a atenção para outro fato: “Já melhorou muito, mas infelizmente, ainda sentimos o preconceito, a discriminação por parte de algumas pessoas”.
Levamos a observação de Dorval e Losin (dentre outros) sobre a dificuldade de conseguir um encontro com o Prefeito à atual administração. Sua Assessoria de Imprensa nos informou que “de acordo com a Administração Municipal, os haitianos sempre receberam a devida atenção por parte dos titulares das secretarias e dos departamentos, não somente com informações, mas também com os auxílios do Cadastro Único, aberto em 2014 para os imigrantes, o que fez com que o serviço se tornasse muito procurado pelos haitianos, pois é através do Cadastro Único, e com o atendimento aos critérios por parte deles, que deu-se acesso aos programas sociais do Governo Federal”.
Por fim, a Assessoria explica que, assim que o prefeito Guilherme Pasin retornar de uma missão técnica a Mendoza, será verificada a possibilidade de agendamento de uma audiência com uma comitiva de haitianos.

Custo para validação de diploma de curso superior
Mas para Ronal Dorval, existe outro entrave para um grande número de imigrantes que chegam ao país em busca de uma vida melhor: a burocracia e o alto custo na hora de validar o diploma de curso superior obtido no Haiti. Ele explica que muitos possuem formação universitária, o que possibilitaria que trabalhassem em sua área de atuação. Mas obter recursos para realizar esse processo de validação do documento é tarefa árdua, principalmente para quem tem família para sustentar, como é seu caso.
Ele explica que só em relação à tradução, na época, gastou mais de R$ 300,00 – e para quem chega e consegue um emprego inicial com salário mínimo, por exemplo, o valor representa um buraco considerável no orçamento. “Se tivéssemos algum tipo de ajuda nesse sentido, para poder encaminhar esse processo sem custos ou, pelo menos, com custos menores, poderíamos tentar empregos melhores, que garantissem uma vida mais digna para a nossa família”, conclui.
Para Dorval, falta no município uma entidade que funcione não só como ouvidoria para os imigrantes, mas que também os ajude de alguma forma nas diversas questões problemáticas que afetam suas vidas aqui no Brasil. E cita o exemplo de Caxias do Sul, onde foi criado o Centro de Atendimento ao Migrante (CAM), que a seu ver, se tornou uma referência para haitianos do município que buscam esclarecimentos em diversas questões.

São 573 famílias de haitianos de baixa renda cadastradas até o momento
Segundo Adriane Lazzarotto, Assessora Administrativa que coordena o Setor de Cadastro Único do município, foi iniciado em 2014 um trabalho de potencialização do cadastramento de imigrantes, sendo que a grande demanda desde então sempre foi de famílias/pessoas da República do Haiti.
Ela explica que o Cadastro Único da Assistência Social tem como objetivo identificar e cadastrar as famílias de baixa renda do município, sendo estas as que vivem com renda mensal familiar de até três salários mínimos ou renda mensal per capita de até 1/2 salário mínimo, oportunizando o acesso aos programas sociais, mas também oferecendo uma leitura do território em relação à situação socioeconômica.
Nos dados informados pela coordenadora – conforme Cadastro Único referente a dezembro de 2016 – constam registros de 573 famílias / 767 pessoas com origem na República do Haiti (que se enquadram no perfil de baixa renda citado no parágrafo anterior). Adriane Lazzarotto explica: “Em termos de município, eles acessam os serviços nos mesmos termos de qualquer outro cidadão, considerando a oferta e disponibilidade”.
Mas ela ressalta que o trabalho efetivo é da Pastoral do Imigrante, da Paróquia Santo Antônio. E acrescenta: “As dificuldades inerentes (comunicação, pelo fato de não falarem a língua portuguesa ou questões culturais) são tratadas pelos serviços, que buscam alternativas e estratégias de atuação e atendimento. Na região, Caxias tem a Central de Atendimento ao Imigrante, mas em Bento Gonçalves ainda não há organização similar”, comenta.
A coordenadora comenta que algumas universidades chegaram a abordar o tema, a partir do interesse de alguns alunos em desenvolver projetos na área da imigração, mas que não tem conhecimento que haja em funcionamento alguma organização local que tenha como foco específico atender imigrantes. E completa: “O que acaba acontecendo é que eles buscam os serviços públicos de atenção básica, com suas demandas, e são atendidos no que compete a cada serviço e em sua capacidade de atendimento”.
Tanto as questões envolvendo dificuldades com a língua quanto as que abordam o alto custo para a validação de diplomas obtidos no exterior também foram citadas pela coordenadora como problemas levados ao conhecimento do setor pelos haitianos que residem em Bento Gonçalves. Mas ao que parece, é a boa vontade e iniciativa de algumas pessoas que tem feito a diferença na vida de muitos imigrantes que querem recomeçar suas vidas com dignidade, esperança e o respeito da comunidade que os recebeu.
Em meio a tantas dificuldades, os haitianos entrevistados se juntam num coro esperançoso, exibindo sorrisos e reafirmando a crença de que tudo pode melhorar. E verbalizam suas expectativas com firmeza: que o poder público possa fazer mais, possa ouvir mais e principalmente, possa ver com mais clareza a realidade que eles enfrentam nessa jornada que começou longe, nas raízes de sua história e memória, num país guardado com afeto e saudade, mas despedaçado pela adversidade de uma tragédia que os tornou peregrinos. E aqui, tudo o que eles buscam é um recomeço.